Cuidar dos pobres e pessoas que vivem em situação de rua não se resume apenas ao Dia Mundial dos Pobres, que em 2022, chegou em sua 6ª edição. Realizado, em Salvador, neste domingo (13), na área externa do Santuário Santa Dulce dos Pobres, localizado na Avenida Dendezeiros do Bonfim. O evento é promovido anualmente pelo papa Francisco.
Com atividades voltadas para os moradores que vivem nas ruas de Salvador, a ‘Jornada do Pobre’ levou café da manhã, almoço, música, corte de cabelo para homens e mulheres, além de marcações de médicos para o check up da saúde e futuros acolhimentos.
Ter um olhar mais humano para os necessitados é um trabalho diário e persistente. A missionária Gilsilene Ferreira, mais conhecida como Irmã Lena, que faz parte da pastoral que organiza o evento, explica que a missão é fazer a inclusão das pessoas nas casas de acolhimento. “Todos têm direito a refeição, a um lugar para descansar, ter dignidade e cidadania”, enfatiza.
Ao todo, são cinco comunidades que realizam os acolhimentos de pessoas que vivem nas ruas da capital baiana: Trindade, Marta Maria, Obra Lumen, Semeadores da Paz e Projeto Levanta-te Anda, todos da igreja católica. Nesses espaços, que estão espalhados por Salvador, aceitam pessoas que têm diversos problemas com substâncias psicoativas, alcoólicas, que estão em recuperação ou que tomam a iniciativa para sair das ruas.
“O que nós fazemos todos os dias é motivar. Essa motivação ocorre até o momento que a pessoa diga: ‘eu agora quero dar um passo para transformar a minha vida’. Então, é nesse momento que a gente abre as portas”, explica Irmã Lena.
E foi assim que Gilmar França Santos, de 71 anos, resolveu sair da Baixa do Bonfim e pediu acolhimento na Casa Lumen, em São João do Cabrito, no bairro de Plataforma. Ele viveu sozinho durante décadas, andando pelas ruas da capital desde os 13 anos e explicou, emocionado, que se sentia perdido na vida.
“[Eu] não era uma pessoa feliz. Eu vendo, atualmente, as fitas do Senhor do Bonfim. Mas eu já vendi doce, já trabalhei tomando conta de carro e juntava meu dinheiro. Hoje estou bem aparado e no paraíso. É uma coisa que nunca senti na minha vida”, desabafa.
A missionária Edvania Martins, que faz parte da Casa Lumen, detalhou que Gilmar foi insistente e implorou para ser aceito da obra. Segundo ela, que faz esse trabalho há mais de 15 anos, foi difícil aceitá-lo no começo devido às condições físicas, mas que a residência já tem mais de 17 pessoas com deficiências físicas e que foram bem recebidas. “Ele chorou tanto no dia que a gente foi encontrar com ele na Baixa do Bonfim, que não teve como a gente não levar para casa. É uma grande alegria perceber que Gilmar se sentiu acolhido por nós”.
Os acolhidos passam a morar nas casas das comunidades até poder reestruturar a vida gradativamente. Algumas casas acolhem todos juntos, mas a Obra Lumen é separada por gênero, homens e mulheres. A proposta da casa, segundo a missionária, é que as pessoas sejam reintegradas no âmbito familiar e, caso não ocorra, permaneçam na obra pois “todo mundo é uma grande família”.
Apesar de ter várias comunidades de acolhimento, tudo é na base da doação. “Doação da vida, doação das pessoas, dos grupos, de pessoas individuais da igreja católica que cedeu o espaço. Enfim, doação até de Deus, porque Ele sempre nos ajuda”, explica Edvania.
Edvania Martins, missionária Casa Lumen (Foto: Brenda Viana / CORREIO) |
Dia Mundial dos Pobres, em Salvador (Foto: Brenda Viana / CORREIO) |
Olhar mais humano
Ao passar por pessoas embaixo de uma ponte ou em qualquer outro lugar abandonado da cidade, é possível ver a solidão e a falta de um olhar mais humano. O missionário Rui Temberg, de 52 anos, dormiu em papelão durante 17 anos. Ele revelou que já fez de tudo para conseguir o único alimento do dia ou até da semana, mas que hoje é grato por ter sido acolhido pela igreja católica e por ter se afastado das drogas.
Rui Temberg viveu nas ruas de Salvador por 17 anos (Foto: Brenda Viana / CORREIO) |
“Foi uma mudança de vida que não tem como não agradecer. Comia comida do lixo, andava quatro, cinco dias sem tomar banho e até com fome, porque não encontrava nada, além das drogas que eu usava bastante. Hoje tenho uma bela cama, tenho escova de dente e comida. Dou de graça meus trabalhos porque recebi de graça”, explica.
Aos 45 anos, Dina Santos Gomes compreendeu o significado de ser uma grande mãe. A pequena Júlia Gomes, de 1 ano e cinco meses, foi a grande incentivadora para que Dina saísse do vício do crack e fosse viver uma vida longe das ruas. Moradora dos becos e vielas da capital baiana desde os 9 anos, a recém chegada na casa Lumen contou ao CORREIO que decidiu fazer a mudança graças ao marido que teve um olhar mais humano e a retirou das ruas.
“Eu fiquei sempre entre idas e vindas em casas. O nascimento da minha filha Júlia foi crucial para eu focar em mim. Quando eu tive ela, acabei tendo uma recaída, voltei a fumar crack. Fiquei envergonhada, decepcionada comigo mesma e não tive coragem de voltar para a casa do meu marido e fui para as ruas. Ele acabou me procurando por meses, nos viadutos, nos becos, até que me encontrou e me ajudou a ter esse acolhimento com a Lumen”, explica.
Ainda com resquícios das drogas no corpo, Dina comentou que não quis ficar na casa por vontade própria, mas acabou percebendo que precisava ser uma mãe que não foi para suas outras duas filhas que moram com a avó, em Pernambués.
“Não é fácil você deixar as drogas, algo que lhe traz prazer. Usava quando estava sozinha, quando estava triste, quando queria um momento de felicidade. Mas era passageiro. Então eu resolvi acabar com isso porque precisava ser uma mãe digna de uma filha, uma mulher digna para o meu marido”, desabafa.
A droga também foi a grande causadora da mudança de vida de Francisco Orilane, que saiu do Ceará e virou morador de rua na capital baiana. Hoje, com 38 anos, ele sente um alívio em ter saído do submundo das substâncias ilícitas. “Muito difícil nos primeiros meses, porque acaba batendo uma abstinência forte, mas tudo é força de vontade, né? Perdi os laços familiares, filhos, mulher, emprego, enfim. Hoje encontrei Jesus”.
O colega Davi Vieira Filho, 45, também se manteve nas ruas. Durante cinco anos, ele usava drogas e ainda ingeria muito álcool, o que piorava a dependência. “Atualmente sou uma pessoa renovada, estou há seis meses na Lumen e estou servindo porque já precisei dos serviços”.
Ajuda de Deus através do papa
O arcebispo auxiliar de Salvador, Don Valter Magno de Carvalho, chama a atenção para que o Dia Mundial dos Pobres não se configure apenas a um único dia, e sim, para que ocorra nos 365 dias do ano, principalmente para que a sociedade observe seus irmãos mais necessitados.
“Quando a igreja lança essa proposta do Dia Mundial, é para que a sociedade olhe para essa realidade, porque às vezes, os pobres não são olhados, não são enxergados, não são vistos pela sociedade. Então queremos dar atenção a eles e mostrar à sociedade que eles estão aí e precisam de nós”, diz.
Durante a pandemia da covid-19, em Salvador, o Dia Mundial dos Pobres foi realizado, mas com cautela. Mesmo com uma quantidade menor de pessoas no evento, o arcebispo observou que houve uma procura muito grande dos soteropolitanos com a palavra de Deus. “Teve essa intensidade, porque houve muita perda e a busca por Cristo cresceu”.
O arcebispo, por fim, lamentou que muitas pessoas ainda concentram suas riquezas para si e não dividem com os pobres. De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021, quase metade da população preta ou parda da Bahia estava vivendo abaixo da linha da pobreza..
“Ver uma situação onde as pessoas passam fome, onde o sinal mais dramático da pobreza é a fome, observar essas pessoas não tendo o que comer no país com tanta riqueza, é triste e mostra a concentração da renda na mão de poucos. Espero que possamos reverter esse quadro um dia para que pessoas mais vulneráveis tenham condições de vida digna”.
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