Durante a seca histórica do ano passado, as chamas se espalharam pela vegetação nativa mesmo em áreas não associadas ao desmatamento
A luta contra o fogo na amazônia parece não ter fim para quem atua, há anos, no combate direto, como é o caso dos voluntários da Brigada de Alter —em referência ao distrito de Alter do Chão, em Santarém (PA).
Eles enfrentaram em 2023, junto a uma força-tarefa nacional, o aumento de incêndios florestais na região conhecida como Baixo Tapajós, no oeste do Pará. E agora se preparam para mais um ano difícil.
Durante a seca histórica do ano passado, as chamas se espalharam pela vegetação nativa mesmo em áreas não associadas ao desmatamento —historicamente, os problemas andam juntos, pois o fogo é usado para abrir pastagem depois da derrubada de árvores. Para complicar ainda mais o combate às queimadas, os rios da região tiveram níveis recordes de baixa, deixando inacessíveis vilarejos de indígenas e de ribeirinhos.
Neste ano, esse quadro tende a se repetir —até mesmo a piorar. Considerando a quantidade de focos de calor de 1º de janeiro até a última sexta (26), a amazônia vive seu pior cenário de fogo em duas décadas. O número (21.221) é o mais alto desde 2005, de acordo com o programa BDQueimadas, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Em comparação com o mesmo período em 2023, quando foram computados 12.114 focos de calor, houve um aumento de 75%. Apenas em dois dias da última semana, em 23 e 24 de julho, a amazônia teve 1.318 focos, destacou a ONG Greenpeace.
Com chuvas abaixo do esperado até o momento em 2024, a seca começou mais cedo. O fenômeno La Niña, aguardado para o segundo semestre, tende a trazer chuva para a região, mas cientistas ainda não conseguem dimensionar que intensidade ele terá desta vez.
Procurado pela reportagem, o MMA (Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima) diz, em nota, que os incêndios florestais no Brasil são intensificados pela mudança climática e pelo forte El Niño iniciado em 2023. O estado de Roraima, frisa a nota, foi o mais atingido nos primeiros meses de 2024.
O cenário climático enfrentado desde o ano passado, afirma a pasta, mudou o padrão dos incêndios, com 31,7% deles ocorrendo em vegetação primária e 15,5% em áreas desmatadas.
Como resposta ao problema, o ministério destaca a criação de sala de situação para coordenar a resposta federal aos incêndios e à estiagem no país.
O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o ICMBio (Instituto Chico Mendes Mendes de Conservação da Biodiversidade) terão mais de 3.000 brigadistas para enfrentar a temporada de fogo em 2024, cita o governo federal, que afirma também ter destinado R$ 405 milhões aos Corpos de Bombeiros da Amazônia Legal.
Em junho, a Folha percorreu áreas queimadas na região no Pará —o estado do Brasil mais afetado por incêndios florestais em 2023.
A memória da seca do ano passado, a maior em 125 anos, segundo pesquisadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), ainda está viva entre os brigadistas. A propagação do fogo em copas de árvores de 30 metros de altura é uma das lembranças que guardam.
Nesta segunda (29), o grupo da região de Alter do Chão —onde as queimadas ainda não atingiram uma situação crítica em 2024— iniciará um curso de formação promovido junto ao ICMBio. Essa capacitação, realizada com recursos de ONGs, deve formar 27 novos brigadistas.
O voluntário Daniel Gutierrez Govino, um dos fundadores da brigada, diz sentir na pele os efeitos das mudanças climáticas e o aumento da demanda de combate a incêndios. Ele conta que só era possível identificar a origem do fogo em 2023 por meio de monitoramento de satélites, sendo a maioria vindo de fazendas.
“No ano passado, a fumaça era tão intensa que não dava para ver de onde vinha. Eu saía do quarto de manhã e o cheiro da fumaça era tanto… Foi uma temporada muito seca”, recorda.
Para continuar no enfrentamento do fogo na amazônia, Govino já teve que superar uma acusação de incêndio criminoso, que o levou à prisão, em 2019, junto a outros três colegas da brigada. O grupo foi solto três dias depois, e o caso, sem provas, foi arquivado sem apontar nenhum responsável.
O brigadista atribuiu o episódio a uma perseguição de um grupo de grileiros, que, segundo ele, atuou na ignição do fogo em diversos pontos na APA (área de proteção ambiental) de Alter do Chão. Ele relata que hoje os conflitos estão menores.
“A sensação de injustiça é uma das piores experiências que eu já senti”, diz Govino, sobre a prisão após ter participado, na linha de frente, da operação nacional de combate ao fogo. “Eles [os grileiros] queriam acabar com a gente, e a gente saiu mais forte no final.”
A amazônia teve uma redução de 50% no desmatamento em 2023, comparado com o ano anterior, segundo o sistema Deter, do Inpe. Entretanto, houve um aumento de 36% na área queimada, de acordo com os cientistas do Ipam.
O bioma teve, no ano passado, cerca de 107.572 km² queimados, área maior que o estado do Pernambuco (98 mil km²). Em 2022, em comparação, a área foi 79.007 km².
Ane Alencar, diretora de ciência do Ipam e coordenadora do MapBiomas Fogo, reforça que “normalmente o fogo e o desmatamento andam juntos”, mas dessa vez houve um descolamento.
Ela conta que o governo federal concentrou esforços em 71 municípios prioritários, localizados no sudeste e oeste de Pará, Mato Grosso, Rondônia e Acre, no chamado “arco do desmatamento”, o que reduziu as queimadas em áreas de pastagem e de agricultura.
Por outro lado, florestas nativas na região mais ao norte do Pará, em Roraima e no Amapá foram muito atingidas. A área queimada aumentou em terras indígenas, unidades de conservação, projetos de assentamento, quilombos, florestas públicas não destinadas e outros tipos de terras públicas.
“Setembro, normalmente, é o pico de área queimada na amazônia. No ano passado, teve um pico em abril e depois foi reduzindo, mas observamos uma anomalia em outubro, novembro e dezembro. É como se o período de queimada tivesse se deslocado para o final do ano”, avalia Alencar.
Marcílio Castro, indígena borari, é voluntário na Brigada de Alter desde 2019, quando completou 18 anos. Comprometido em proteger o bioma, ele esteve no front durante a operação de combate ao fogo na Resex (reserva extrativista) Tapajós-Arapiuns, que durou 49 dias, no fim do ano passado.
Em meio à seca dos rios que davam acesso às comunidades em chamas, o brigadista e seus colegas atuaram ao lado de ICMBio, Prevfogo (programa do Ibama) e do Corpo de Bombeiros Militar do Pará.
“Estávamos em pouca mão de obra para cobrir toda aquela área gigantesca. A maior dificuldade foi a seca dos rios, porque a nossa logística é à base de lancha. Tivemos esse encalço de ficarmos ilhados até que o ICMBio disponibilizou um helicóptero para a gente”, lembra Castro.
Fonte: Jornal de Brasília