Justiça Federal de Ilhéus (BA) concedeu liminar para garantir que uma criança de 4 anos diagnosticada com o tipo II da Atrofia Muscular Espinhal (AME) tenha acesso ao Spiranza, medicamento usado para inibir o desenvolvimento da doença degenerativa. Pela demora na identificação da doença, Letícia Lobo não pode mais recorrer ao tratamento com Zolgensma, medicação importada e considerada a mais cara do mundo para bloquear as sequelas.
A decisão determina que o estado da Bahia forneça transporte, alimentação e hospedagem para a menor e a quem a acompanhe, além de obrigar a União a custear o medicamento que, apesar de ter sido incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS), não estava disponível na rede pública municipal. A determinação também obriga o governo baiano a providenciar o atendimento interdisciplinar necessário ao tratamento, como fisioterapia e fonoaudiologia.
Filha de trabalhadores rurais, a criança não conseguiu suporte da rede pública da Bahia para o protocolo recomendado em casos da patologia. A ação foi impetrada pela advogada de Brasília Daniela Tamanini, também responsável pelos casos das bebês Kyara Lis e Helena Gabrielle, ambas do Distrito Federal.
Antes de Tamanini, os pais chegaram a procurar a Defensoria Pública da União, mas o órgão não atende pessoas que moram na pequena cidade de Camamu, localizada no litoral sul baiano. Para se ter ideia, o município tem pouco mais de 30 mil habitantes.
“Todo esse tempo, sabíamos que a Letícia tinha algum problema, mas ninguém sabia nos dizer o que era. A gente foi para tantos lugares, viajamos, levamos ela a médicos, mas ninguém nos falava. Com tantos ‘nãos’, decidimos procurar os sintomas na internet e desconfiamos que ela tinha a doença, justamente, no período da pandemia. A gente só conseguia pedir a Deus que nossa filha continuasse bem e Ele ouviu nossas preces. Foram esses 8 meses sem que a doença avançasse mais”, conta Núbia Lobo, mãe da paciente.
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Diagnóstico tardio
A demora para buscar tratamento se deu porque, embora os sintomas tenham aparecido ainda aos 4 meses de idade, a família só conseguiu o diagnóstico definitivo da doença há poucos meses, quando a menina já tinha 3 anos. Desde então, passaram a correr contra o tempo a fim de minimizar os efeitos da doença degenerativa.
Como meio de vida, os pais plantam hortaliças na área rural do município onde moram. Aos sábados, colhem o que foi cultivado e vendem na principal feira da pequena cidade. O trabalho rende para os três, em média, R$ 600 por mês. É com esse dinheiro que eles custeiam as mais diversas necessidades da criança, inclusive as viagens para Salvador, a capital baiana, e outros municípios em busca de especialistas.
“A nossa maior luta não foi contra a doença, porque a gente sabe que tem um Deus lá em cima olhando por nós e por ela. Nossa maior inimiga foi a desinformação. Foi ela que nos fez demorar tanto para conseguir saber como brigar pela vida da nossa filha”, continuou. “Mas a vida é uma eterna luta. É uma batalha diária, mas há também vitórias como a de hoje pela vida da minha vida. Quer coisa melhor do que receber uma notícia dessa? Não valeu a pena ter lutado tanto?”, emocionou-se.
A doença rara afeta a medula espinhal e núcleos na base do cérebro, causando fraqueza muscular, atrofia e paralisia muscular progressiva. A patologia é resultado de alterações do gene que codifica a proteína SMN (Survival Motor Neuron), uma molécula necessária para a sobrevivência do neurônio motor, responsável pelo controle do movimento muscular. Sem a administração de um tratamento rigoroso, a doença pode levar as crianças à morte.
Prazo de 15 dias
Segundo a juíza federal substituta Letícia Daniele Bossonario, o prazo para o cumprimento da tutela de urgência é de 15 dias. “Considerando que o medicamento já é fornecido regularmente para pacientes com o Tipo I da doença, havendo, portanto, estrutura para pronto atendimento, sob pena de multa diária de R$ 5 mil por dia de atraso a ser paga pelo ente que ensejou o atraso ou solidariamente se não for possível aferir a responsabilidade pela demora.”
A magistrada também considerou a situação financeira dos pais da criança, trabalhadores rurais, e a impossibilidade evidente de arcarem com os custos do medicamento. “O perigo da demora, por sua vez, decorre da própria gravidade da doença e risco de comprometimento respiratório, além da possibilidade de estabilização e desenvolvimento da autora com mais força muscular que lhe permita uma melhor qualidade de vida”, sustentou.
Para a advogada Daniela Tamanini, procurada pela família após a repercussão de vitórias semelhantes recentes, o Estado acaba transformando o que é um direito garantido na Constituição em mercadoria.
“As pessoas que possuem maior poder aquisitivo são também as mesmas que têm acesso a um melhor atendimento médico. É lamentável que famílias ainda precisem acionar o Judiciário para receber um medicamento já incorporado ao SUS, como amplamente divulgado. A Justiça Federal de Ilhéus trouxe alento a esses pais, trabalhadores rurais, que temiam pelo agravamento da doença e prejuízos respiratórios irreparáveis”, explicou a autora da ação.