ReproduçãoEstudo aborda a vida das pessoas que não têm desejo sexual – Foto: ReproduçãoEstudo aborda a vida das pessoas que não têm desejo sexual
Há quem diga – normalmente em tom de brincadeira – que chocolate é tão bom quanto sexo. Para alguns, no entanto, ele é muito melhor. E não somente o chocolate. Na contramão dessa sociedade cada vez mais hipersexualizada, existem indivíduos que dizem haver coisas muito melhores na vida do que transar.
Mais do que isso: eles afirmam não sentir atração sexual. A esta ausência de desejo por outra pessoa, dá-se o nome de assexualidade.
E se, no passado, o filósofo francês Michel Foucault provocou discussões ao questionar se precisamos mesmo de um sexo verdadeiro, hoje a pergunta que vem intrigando especialistas de diversas áreas é: será que todo ser humano, necessariamente, é dotado de desejos sexuais?
Os assexuais defendem que não. Suas vozes e histórias não estão nas novelas, nos programas de TV, nas discussões de bar e, até pouco tempo atrás, não eram conhecidas, mas passaram a ter eco e visibilidade após o surgimento da internet, sobretudo com o crescimento das comunidades virtuais e das redes sociais.
Nestes espaços, eles trocam dúvidas, conselhos, confidências, embora raramente queiram mostrar o rosto nos jornais. A equipe de reportagem tentou entrevistar três baianos assexuais que participam de comunidades nas redes sociais, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
A mesma dificuldade teve a pedagoga Elisabete Regina de Oliveira, que resolveu se debruçar sobre o tema em sua tese de doutorado, defendida em maio de 2015 na Faculdade de Educação da Universidade São Paulo (USP). O objetivo foi compreender a trajetória de autoidentificação de indivíduos assexuais, com destaque para suas interações sociais na escola.
“Os estudos sobre a sexualidade humana no Ocidente já surgiram sob a égide da sexo-normatividade, pois partiam do pressuposto de uma força sexual estruturante das diferentes sexualidades, inerente aos corpos. Os assexuais estão fora deste conceito que estabelece o que é normal e, naturalmente, são muito discriminados por isso. Este receio de aparecer é compreensível”.
Apesar das dificuldades, Elisabete conseguiu estudar a vida de 40 assexuais, de 15 a 59 anos, de quatro regiões brasileiras. Dois deles, inclusive, são baianos, um de Salvador e outro de Vitória da Conquista.
Segundo ela, diferentemente do celibato, que é uma escolha, e do desejo sexual hipoativo, que é uma patologia, a assexualidade está atrelada à falta de interesse em relações sexuais, fato que não impede a formação de laços afetivos e românticos.
Associação
“Parte dos assexuais afirma já ter se apaixonado. O sentimento de amor e a atração sexual não estão necessariamente associados. Por isso, da mesma forma que muitos praticam relações sexuais sem amar seus parceiros, é possível amar alguém sem que se queira relacionar-se sexualmente com a pessoa, e é esse último caso que ocorre muitas vezes com os assexuais”, explica a pedagoga.
Segundo a psicanalista e sexóloga Carmen Janssen, a falta de atração sexual pode ocorrer por diversas razões, como traumas e disfunções hormonais, mas nem sempre está relacionada a algum problema de saúde físico ou mental. “Se essa falta de libido não gera sofrimento para esse indivíduo, não há problema algum”, garante.
De acordo com a psicanalista e filósofa Solange Meinking, em alguns casos ocorre a sublimação ou transferência do desejo sexual para outras áreas. “Freud (criador da psicanálise) fala que somos libido. A libido é energia propulsora da vida e passível de ser sublimada, desviada para um objetivo não sexual, como a arte, a literatura e as atividades profissionais”.
Cobrança
O trabalho de Elisabete Oliveira revela que não é a ausência de desejo sexual por outra pessoa, mas a cobrança da sociedade, um dos principais problemas enfrentados pelos assexuais.
Entre os relatos, está o de Gilda, 59: “A prática do sexo para mim era um pedágio social. Tive experiências heterossexuais e homossexuais; tentei, mas não consegui, de jeito nenhum, sentir interesse”, afirma.
Para o psicólogo Adriano Cysneiros, também membro do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sociedade (CUS) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), a cobrança por uma hegemonia do desejo sexual é resultado de uma sociedade que ainda não compreende a diversidade sexual.
“Esta diversidade diz respeito à sexualidade e, também, à maneira como cada um entende a prática sexual. Para uns, sexo é essencialmente a transa, uma atividade genital. Para outros, não, é algo mais amplo”, pontua.
Bullying é um dos problemas
A escritora curitibana Luciana Do Rocio, 41, desde a adolescência se achava diferente das outras pessoas. Quando os colegas de escola falavam sobre suas experiências sexuais, sentia repulsa. “Tinha nojo e, como não me relacionava com ninguém, eles achavam que eu era homossexual. Sofri bullying, era chamada de Maria Sapatão, lésbica, chegaram a me dar uma cueca de presente em um dos meus aniversários”, conta.
O sentimento de inadequação só acabou quando ela encontrou, na internet, relatos de pessoas que também diziam não ter vontade de transar. “Foi aí que percebi que outras pessoas eram como eu. Vi que o que sentia tinha um nome: assexualidade”, diz.
Desde então, a escritora não esconde que não tem desejo sexual. “Gosto de me relacionar, me apaixono pelas pessoas, mas não tenho vontade de transar com elas. Sou uma assexual romântica”, descreve.
Subclassificações
Esta é apenas uma das subclassificações da assexualidade. Há outras, como mostra o boxe acima. Alecsander Gonçalves, por exemplo, define-se como assexual arromântico, aquele que não sente atração romântica ou que não possui interesse por relacionamentos românticos.
“A minha família e os colegas costumam dizer que sou assexual porque nunca tive experiência sexual e nunca me apaixonei; ou pensam que sou homossexual e ainda não me descobri. Na verdade, sou virgem e, simplesmente, não me interessa ter experiências sexuais”, explica.
Na opinião de Alecsander, assim como ocorreu com os homossexuais, os assexuais terão mais visibilidade no futuro. “Para isso, é importante que os assexuais lutem por essa visibilidade. Precisamos ser reconhecidos e respeitados”, defende.