Conheça a história do inocente que foi preso, estuprado e contraiu Aids na cadeia

Conheça a história do inocente que foi preso, estuprado e contraiu Aids na cadeia

No dia 8 de setembro de 2003, um casal procurou o 26º Distrito Policial de Manaus, localizado na antiga ocupação conhecida como Nova Floresta (hoje um bairro), para denunciar o estupro da filha de nove anos de idade. Segundo a menina, dois homens entraram no quarto em que ela dormia com os irmãos e a levaram para o quintal durante a madrugada. Lá, um deles colocou uma faca no pescoço dela, ordenou que tirasse as roupas e abrisse as pernas. O outro ainda tentou impedir o avanço, mas não o suficiente. “Doeu muito”, disse ela em seu depoimento à polícia.

Apesar de estar escuro, a menina disse ter sido capaz de identificar a fisionomia de seu estuprador. Depois que a dupla foi embora, ela caminhou ao quarto dos pais e, sangrando, contou o que havia acontecido. Um laudo emitido pelo IML (Instituto Médico Legal) foi categórico e constatou sangramento vaginal e vestígios de “cópula anal recente”. Foi no dia 5 de novembro, quase dois meses depois de o estupro ter sido registrado, que Heberson “começou a morrer” pela primeira vez. Segundo os autos do processo, a polícia levou a menina para circular pelo bairro na esperança de que ela pudesse reconhecer o suspeito.

Após algumas horas de caminhada, a menina apontou para Heberson, que bebia com amigos em um bar do bairro. Pouco depois, os policiais foram à casa dele e o levaram ao 26º DP, onde foi detido. Na sala de reconhecimento, a vítima apontou Heberson como sendo o seu estuprador. Não havia flagrante nem mandado de prisão quando ele foi preso”, diz a defensora pública Ilmair Faria. O mandado de prisão preventiva só foi expedido no dia seguinte à prisão. Em seu depoimento, Heberson admitiu passagens pela polícia por brigas de gangues (conhecidas em Manaus como “galeras”) e furtos, mas negou ter estuprado a menina. Segundo ele, na noite do crime, ele estava em casa com sua mulher e os dois filhos. Prevaleceu a palavra da vítima.

Na cela da delegacia, Heberson se desesperou e tentou se matar. Foi salvo por um conhecido criminoso do bairro que percebeu a tentativa. “Ele chamou os policiais para alertar e me botar na cela dele. Lá, ele me deu vários conselhos”, contou. Sete meses se passaram desde que Heberson chegou à cadeia onde ele foi estuprado. Ele já não era mais chamado de “pintinho” (apelido dado aos novatos) e pediu a um dos “xerifes” da cadeia. “Eu estava com a suspeita”, diz ele. Autorização concedida. Heberson pede à psicóloga de plantão que o ajude a ir ao Hospital Alfredo Da Matta, referência no tratamento de Aids no Amazonas. Ela tateia o paciente com palavras. Heberson foi ao hospital escoltado por policiais. Um mês depois, recebeu o diagnóstico: HIV Positivo.

“Ela dizia que o estuprador era moreno claro, tinha os cabelos enrolados, a arcada dentária saliente e que ele não tinha os dentes caninos. Ela repetiu isso na Justiça, também. Se você visse o Heberson, estava claro que não era ele que ela estava descrevendo”, lembra Ilmair. Ilmair teve de pedir um laudo do IML (Instituto Médico Legal) para comprovar que Heberson é um moreno de pele mais escura, seus cabelos não são enrolados, sua arcada dentária não é voltada para a frente e ele tem os dentes caninos. O laudo, pedido em maio de 2005, só foi realizado em abril de 2006, 11 meses depois. Nesse tempo, ele passou a sofrer ameaças dentro da cadeia e foi transferido para a Cadeia Raimundo Desembargador Vidal Pessoa. Em abril de 2006, o laudo ficou pronto.

Em maio de 2006, o MP apresentou as alegações finais do processo. Naquelas sete páginas, o MP reconheceu que as provas contra Heberson eram frágeis e apontou as contradições entre os depoimentos da vítima e das testemunhas, dados dois anos antes. No dia 17 de maio de 2006, o juiz do caso, Jorge Manoel Lopes Lins (hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Amazonas), absolveu Heberson. Diante das contradições e do laudo apresentado por Ilmair, o magistrado disse em sua sentença que se via “obrigado a reconhecer que persistem sérias dúvidas quanto à participação do acusado no delito”. Dúvidas que custaram 925 dias de sua vida. No seu primeiro dia de liberdade, Heberson quis voltar para a cela. “Eu já estava vivendo a vida da cadeia. A doutora (Ilmair) estava do meu lado e me empurrou. Ela disse: ‘Para de leseira, Heberson. Vamos embora’”, contou. Fonte: Uol.