Brasil consome 56,6 milhões de caixas de calmantes e soníferos

Os brasileiros compraram, em 2018, mais de 56,6 milhões de caixas de medicamentos para ansiedade e para dormir — cerca de 6.471 caixas vendidas por hora ou, aproximadamente, 1,4 bilhão de comprimidos em um ano.

Os números do SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados) foram obtidos com exclusividade pelo R7, junto à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

A reportagem solicitou um levantamento de oito princípios ativos para ansiedade e insônia, que estão entre os mais receitados pelos médicos. Os números se referem apenas ao que foi vendido em farmácias e drogarias de natureza privada entre 2011 (data de início da série histórica) e 2018.

São eles: alprazolam, bromazepam, clonazepam, diazepam, lorazepam, flunitrazepam, midazolam e zolpidem.

Não foram enviados pela Anvisa os dados de venda do bromazepam entre 2011 e 2015.

Os sete primeiros são benzodiazepínicos (tarja preta), cuja venda depende de receituário especial. Estes são ansiolíticos conhecidos popularmente como calmantes, que muitas vezes induzem ao sono.

O último, zolpidem, é um hipnótico usado apenas no tratamento de insônia, com venda feita mediante receita dupla simples — a receita especial é exigida somente para a apresentação de 12,5 mg, que é tarja preta. 

Em oito anos, as vendas desses oito medicamentos somaram mais de 505 milhões de caixas.

Pico de consumo em 2015

O ano de 2015 registrou recorde de consumo, com 76,2 milhões de caixas vendidas — excluindo o zolpidem, foram 70,8 milhões de caixas de ansiolíticos (veja infográfico abaixo).

Para o psiquiatra Rodrigo Martins Leite, diretor dos ambulatórios do IPq (Instituto de Psiquiatria) do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), mesmo que o consumo atual tenha caído em relação a 2015, o número divulgado pela Anvisa ainda “é significativo”.

O médico, que foi coordenador municipal de Saúde Mental em São Paulo, em 2017, relaciona o aumento das vendas de psicotrópicos em 2015 ao início da crise econômica que o Brasil enfrentou, com aumento do desemprego e problemas decorrentes disso que mexem com a estabilidade emocional da população.

Para Leite, “os momentos sociais ruins fazem com que as pessoas também tenham uma percepção pior da saúde mental”. O medicamento, diz ele, “é a saída mais rápida”.

“Essa série histórica é bem a curva da nossa crise social, política e econômica. O momento atual não está conseguindo aplacar a ansiedade da sociedade brasileira. A gente vive em um cenário de muita incerteza, tanto individualmente quanto coletivamente”, acrescenta.

Não há pesquisas oficiais recentes no Brasil que possam estimar quantos brasileiros fazem uso contínuo de calmantes e soníferos.

Estudos anteriores a 2013 calculavam que entre 5,6% e 21% da população brasileira fizesse uso de benzodiazepínicos, sendo mais frequente em mulheres e idosos, segundo AMB (Associação Médica Brasileira).

Rivotril lidera lista

Clonazepam é o benzodiazepínico mais usado no Brasil

Clonazepam é o benzodiazepínico mais usado no Brasil

O campeão de vendas no período analisado é o clonazepam (nome comercial Rivotril): 233,3 milhões de caixas em oito anos.

Foram comercializadas 19,8 milhões de caixas em 2018. No entanto, esse número já chegou a 37,9 milhões em 2015.

O Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico 2017, da Anvisa, mostra que o clonazepam foi o 20º medicamento mais vendido em todo o país naquele ano.

“O clonazepam é, eu acho, uma das substâncias mais difundidas. O nome Rivotril circula por todas as redes sociais, tem páginas sobre isso”, diz a médica neurologista Andrea Bacelar, presidente da Associação Brasileira do Sono.

“O uso do clonazepam também reflete uma piora na saúde mental da sociedade como um todo. Para lidar com o estresse do dia a dia, mesmo que não tenham um transtorno mental propriamente dito, as pessoas acabam fazendo uso”, explica o psiquiatra Rodrigo Leite.

O alprazolam (nome comercial Frontal) foi o segundo ansiolítico mais comercializado no ano passado: 11,7 milhões de caixas.

O psiquiatra diz que, na comparação entre os dois, o clonazepam acaba sendo menos danoso quando se fala em vício.

“Dos benzodiazepínicos, [o clonazepam] é um pouco mais seguro, por conta da meia-vida dele que é mais longa, não gera tanto abuso. É diferente do Frontal, por exemplo.”

Abuso de calmantes

Os benzodiazepínicos (ansiolíticos) são as drogas legais mais abusadas em todo o mundo.

Uma diretriz da AMB publicada em 2013 fazia uma alerta aos médicos: “Recomenda-se investigar sobre o consumo [de benzodiazepínicos] e observar se há indicações para sua continuidade, já que a síndrome de dependência de BZDs [benzodiazepínicos] pode ocorrer em doses próximas à terapêutica.”

Leia também: Brasil é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS

Segundo Andrea, o uso de benzodiazepínicos no Brasil tem direta relação com os problemas para dormir, apesar de não serem recomendados para insônia.

“Infelizmente, muitos utilizam o benzodiazepínico com o intuito de dormir. A grande maioria utiliza à noite. É para desacelerar e dormir. Esses números mostram uma migração quase que direta do clonazepam para o zolpidem. Isso é positivo por um lado, mas não significa dizer que a gente precise utilizar tanto zolpidem assim.”

A presidente da Associação Brasileira do Sono se mostra assustada com o fato de terem sido vendidas 2,78 milhões de caixas de lorazepam em 2018.

“Depois que se soube que o lorazepam é um dos benzodiazepínicos de maior dependência, que com pouco tempo de uso já demonstra dependência, hoje é muito pouco prescrito. Mas essa quantidade ainda é absurda.”

Um estudo brasileiro, publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, em 2007, mostrou que aproximadamente 21% dos idosos faziam uso regular deste medicamento, sendo ainda mais comum entre as mulheres (27%).

“É muito comum idosos que tomam benzodiazepínicos à noite. É um perigo, porque aí levanta para ir ao banheiro e cai”, alerta Andrea.

“O uso prolongado de benzodiazepínicos provoca problemas de memória, de concentração, diminuição da performance no trabalho, aumento do risco de depressão e aumento de demência”, pontua o psiquiatra Rodrigo Leite, do IPq.

Dados consolidados pela Associação Médica Brasileira mostram que 37% dos usuários crônicos de benzodiazepínicos começaram o uso por apresentarem insônia.

“As pessoas têm tido um padrão de sono de pior qualidade no Brasil. Os motivos mais óbvios são estresse, sobrecarga de trabalho, falta de atividade física. E também uma sobrecarga sensorial gerada pelos aparelhos tecnológicos. Essa hiper-conectividade tem gerado muitas queixas relacionadas ao sono”, afirma Leite.

Essas medicações, diz o psiquiatra, “felizmente, ou infelizmente, são muito eficazes para aliviar sintomas”. “O efeito é automático e a imensa maioria das pessoas se adapta muito bem, mas não podem ser mantidas por longos períodos.”

“São medicações para uso agudo, para uso em transtornos de ansiedade agudos. Não se utiliza o benzodiazepínicos de uma forma continuada, nem para ansiedade e muito menos para transtornos do sono”, diz Andrea.

Pré-anestésico e “boa noite Cinderela”

Rohypnol teve 704,9 mil caixas vendidas em 2018

Rohypnol teve 704,9 mil caixas vendidas em 2018

O midazolam (nome comercial Dormonid) e o flunitrazepam (nome comercial Rohypnol) são considerados ansiolíticos de ultra-curta e curta duração, respectivamente. Por isso, normalmente são usados como hipnóticos, popularmente chamados de soníferos.

Em 2018, as farmácias e drogarias em todo o país venderam 350 mil caixas de midazolam e outras 704,9 mil de flunitrazepam. As duas substâncias registram significativas quedas nos últimos anos.

O midazolam é apontado por psiquiatras como altamente viciante, justamente pelo efeito de curta duração. É usado em hospitais como pré-anestésico, pela rápida indução ao sono.

Já o flunitrazepam ganhou uma péssima fama social, sendo inclusive proibido nos Estados Unidos.

“O flunitrazepam é o chamado boa noite Cinderela. É a medicação que foi utilizada de maneira criminosa para gerar essa indução do sono, essa sedação excessiva, às vezes associada a álcool. Houve uma aversão da população e também da classe médica a essa prescrição”, conclui a presidente da Associação Brasileira do Sono. R7